TRILHANDO O CAMINHO
TRANSFORMAÇÃO, INTEGRAÇÃO E UNIÃO
A pessoa que sente o chamado de Deus sabe que a Senda começa exatamente onde ela se encontra. As circunstâncias de sua vida, seus relacionamentos e seus problemas são os instrutores escolhidos pela providência divina para ajudá-la nessa etapa do Caminho. Cada período difícil, cada revés é a essência mesma da lição a ser aprendida. Porém, à medida que vai superando suas fraquezas e mudando sua maneira de pensar, o devoto verifica que o seu ambiente vai mudando, refletindo cada vez mais seu estado de espírito interior. Isso ocorre porque, quando aprendemos uma lição, a providência divina muda o cenário do palco da vida para que possamos vivenciar novos aprendizados.
Nunca é tarde para começar e nenhum problema é insuperável. As verdadeiras barreiras não estão no mundo exterior, mas sim no interior de nossa mente, daí a importância da metanoia, isso é, da transformação de nossos estados mentais. Nenhum esforço é jamais perdido. O processo de transformação é cumulativo e recorrente, e todo esforço, pela lei de causa e efeito, dará seus frutos no devido tempo.[1]
O devoto que verdadeiramente abraça o caminho da perfeição, procurando utilizar com todo empenho os instrumentos de transformação colocados a sua disposição, verifica que alguns sinais começam a aparecer com o tempo. Crescente paz e contentamento tomam conta de seu coração. Serenidade e alegria interiores, por sua vez, passam progressivamente a plasmar seu ambiente exterior. Circunstâncias cada vez mais favoráveis para a prática espiritual são colocadas no caminho daqueles que pedem essas dádivas ao Mestre. Por isso, Jesus advertia:
Todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado a um homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua ruína! (Mt.7:24-27).
As primeiras etapas do processo de crescimento espiritual envolvem um ingente esforço para a transformação da natureza inferior. São tantos os aspectos de nossa personalidade que precisam ser modificados que só mais tarde nos damos conta de que alguns desequilíbrios gritantes precisam ser trabalhados. Começa então o trabalho de integração de todos os aspectos da totalidade humana.
A vida de todos os seres é um verdadeiro milagre de integração. Quer enfoquemos a vida global do planeta, a vida de uma pequenina célula ou a vida de um ser humano, sem a integração de uma infinidade de processos nenhum organismo poderia sobreviver. Muitos psicólogos e neurologistas estão chamando a atenção para a necessidade de integração do desenvolvimento dos dois hemisférios do cérebro. Dizem isso porque o homem moderno desenvolveu muito mais o hemisfério esquerdo, onde são registradas e processadas as atividades intelectivas. O hemisfério direito, onde ocorrem as atividades emotivas e intuitivas, permanece pouco estimulado. Assim, os pesquisadores têm verificado que os indivíduos mais bem sucedidos, tanto na vida profissional e social quanto na familiar, são os que conseguem integrar seus sentimentos e percepções intuitivas com o processo intelectivo.[2]
A integração do inferior ao Superior é o processo que busca reconectar a consciência individual à universal, que sempre existiu no mundo real apesar de não ser percebida pelo homem em sua consciência usual. A união permanente do divino com o terreno é aludida na última passagem do Evangelho de Mateus, quando Jesus se despede dos discípulos dizendo: "Eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos" (Mt 28:20). Mas essa integração deve ser percebida pelo homem. Por isso foi dito: "Reconheçam o que têm diante dos olhos, e o que é oculto lhes será revelado."[3] Para isso o buscador deve deixar desabrochar sua natureza interior, usando toda a energia que lhe for possível direcionar para essa meta. Esse processo está expresso no Evangelho de Tomé em linguagem paradoxal:
"Vendo crianças sendo amamentadas, Jesus disse a seus discípulos, "Essas crianças sendo amamentadas são como aqueles que entram no Reino". Eles lhe perguntaram: "Nós, como crianças, entraremos no Reino"" Jesus lhes respondeu: "Quando tornarem o dois em um, e o interior como o exterior, e o exterior como o interior, e o que está em cima como o que está em baixo, e quando tornarem o masculino e o feminino uma coisa só ... então haverão de entrar no Reino"."[4]
O uso do instrumental transformador, as Chaves do Reino dos Céus, visa promover essa integração. Porém, até mesmo o uso dos doze instrumentos transformadores precisa ser integrado. As dificuldades encontradas no Caminho podem ser invariavelmente identificadas com o uso inadequado ou insuficiente de um ou mais instrumentos. Como a natureza humana é complexa, sua transformação requer a utilização do instrumental como um conjunto integrado de medidas, pois essas agem de forma interativa, complementando-se umas às outras. Uma passagem do Evangelho de Felipe ressalta o caráter complementar de diferentes aspectos da natureza humana necessários à consecução de um determinado propósito:
"A agricultura no mundo requer a cooperação de quatro elementos essenciais. A colheita será reunida no celeiro somente se houver a ação natural da água, da terra, do vento e da luz. A agricultura de Deus, da mesma forma, é baseada em quatro elementos: fé, esperança, amor e conhecimento. A fé é a terra em que fincamos raiz. A esperança é a água por meio da qual somos nutridos. Amor é o vento por meio do qual crescemos. O conhecimento (gnosis), então, é a luz, por meio da qual (amadurecemos)."[5]
O processo de integração da consciência é, num certo sentido, o processo de retorno à essência das coisas, sendo facilitado por três aspectos divinos fundamentais: o Amor, a Verdade e a Ordem. O Amor, como já vimos, é o fator aglutinador por excelência no universo. É a força que leva á união dos pares de opostos na natureza manifestada, masculino e feminino, superior e inferior, Espírito e matéria, etc. Daí o ensinamento de Jesus, de que o amor é o maior dos mandamentos. O verdadeiro amor é o amor universal sem a conotação egoísta de posse de alguma parte desse todo.
A Verdade é outro elemento integrador do ser, como indicam as palavras de Paulo aos Efésios: "Seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direção àquele que é a Cabeça, Cristo, cujo Corpo, em sua inteireza, bem ajustado e unido por meio de toda junta e ligadura, com a operação harmoniosa de cada uma das suas partes, realiza o seu crescimento para a sua própria edificação no amor" (Ef 4:15-16).
Mas, como a verdade pode promover a integração de nossa natureza inferior à superior" O processo de integração requer o reconhecimento da realidade dessas duas naturezas e a identificação de tudo o que impede ou dificulta a manifestação da plenitude de nosso ser. [6] Se formos honestos conosco vamos verificar que, por uma série de mecanismos, procuramos dissimular e esconder muitos aspectos de nossa natureza, tanto inferior como superior.
Antecipando as descobertas psicológicas dos tempos modernos, Jesus disse: "Se manifestarem aquilo que têm em si, isso que manifestarem os salvará. E se não manifestarem aquilo que têm em si, isso que não manifestarem os destruirá."[7] Jesus, aparentemente estava se referindo à manifestação de nossos conteúdos inconscientes, tanto de nossa natureza inferior como da superior. É óbvio que a manifestação de nossa natureza superior é a essência do processo evolutivo. Porém, a manifestação de tudo o que está oculto, ou melhor, reprimido em nossa natureza inferior é condição sine qua non para nossa libertação. Praticamente todos os processos terapêuticos modernos estão voltados para facilitar a expressão dos conteúdos mal resolvidos, as áreas ainda não suficientemente trabalhadas dos pacientes. É interessante observar que o Buda já havia dado o sábio conselho para manifestarmos nossas falhas antes das nossas virtudes.
Pode parecer estranho que a ordem possa exercer um papel integrador. A ordem, porém, é um princípio universal. Os astrônomos, físicos, biólogos e ecologistas descrevem o universo como um mecanismo de imensa complexidade regido por uma ordem intrínseca que ultrapassa a nossa imaginação. Todo elemento, seja ele um corpo celeste, uma partícula subatômica, uma célula em nosso organismo ou um elo na cadeia alimentar, está em seu devido lugar. Tudo interage como engrenagens dentro do grande mecanismo do universo. Essa harmonia fundamental só pode ser explicada pela ordem inerente ao Plano Divino. Essa ordem exterior é um reflexo da ordem interior, que no homem é alcançada quando o indivíduo torna-se totalmente consciente.
O processo de integração, que é um retorno à essência do ser, é necessariamente acompanhado por um esvaziamento de tudo aquilo na natureza inferior que vai contra o amor, a verdade e a ordem. Por exemplo, somente quando o indivíduo se esvazia do desejo egoísta de reter para si os frutos da bênção divina, colocando-se como um elo na cadeia interminável de agentes que compartilham generosamente o que recebem, é que estará pronto para o passo final da união com Deus. Esse ensinamento foi apresentado na parábola da figueira que foi tornada estéril por não ter compartilhado seus frutos (Mt 21:18-22), bem como nas parábolas da semente de trigo que deve morrer para dar muito fruto (Jo 12:24) e da pessoa que deve morrer para alcançar a vida eterna (Jo 12:25).
Um indício de que o processo de esvaziamento está ocorrendo é a crescente simplicidade que pode ser notada na vida do buscador. À medida em que seu coração se volta para o alto e naturalmente se torna desapegado das coisas do mundo, o devoto vai ficando indiferente a todas exigências que anteriormente fazia da vida. A sofisticação no vestir, na alimentação, na vida social e familiar vai dando lugar àquela simplicidade característica de todos os grandes místicos e que foi um dos fatores marcantes da vida de Jesus e de seus discípulos. Para o homem moderno, libertar-se da ilusão dos modismos já é uma grande conquista. Com a presciência dos sábios, Paulo alertou-nos sobre os perigos das exigências da vida mundana, quando disse: "Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade devida a Cristo" (2 Cor 11:3).
Um aspecto dessa simplicidade é a busca da essência que se encontra escondida em todas as tradições. É dito que Buda, ao ser perguntado qual a essência de seu ensinamento, respondeu: "Cesse de praticar o mal; aprenda a praticar o bem." É interessante notar que a assertiva de cessar de fazer o mal é peremptória. Tudo o que prejudica o eu individual e os outros "eus" deve ser evitado. Fazer o bem, no entanto, não é tão simples assim. Em nossa ignorância, muitas vezes tentamos ajudar os outros e acabamos prejudicando-os. Por isso, Buda nos insta a aprender a fazer o bem. Esse aprendizado é longo, até mesmo os discípulos avançados e os iniciados ainda estão aprendendo essa divina arte.
Se Jesus fosse perguntado qual a prática que resumiria a essência de seu ensinamento, é possível que viesse a responder: "Sede perfeitos como o Pai celestial é perfeito. Para isso amai-vos uns aos outros e procurai sempre agir com o coração, falar com o coração e pensar com o coração." Jesus estaria assim indicando que nossa meta é a perfeição, que significa atingirmos a medida da estatura da plenitude do Cristo. A senda espiritual é pavimentada com o amor, o elemento aglutinador divino que supera todas as barreiras. Porém, esse amor precisa ser sábio e perceptivo, daí a segunda parte da recomendação de Jesus, para usarmos o coração como guia de todas nossas ações, palavras e pensamentos. Como Cristo habita no âmago de nosso ser, na câmara secreta do coração, quando nos centrarmos no coração, o Cristo passará a guiar todas as nossas ações, palavras e pensamentos, levando-nos, sem possibilidade de extravio, ao Reino dos Céus. Quando conseguimos ouvir a voz do coração, percebemos que a mensagem é suave e amorosa, e inteiramente dissociada da confusão que possa reinar em nossa vida exterior.[8] A partir de então estaremos conscientes da divina presença em nosso coração como Jesus indicou: "Nesse dia compreendereis que estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós" (Jo 14:20).
Essa orientação tem um paralelo em outras tradições como vemos em Luz no Caminho: "Considera ansiosamente o teu próprio coração. Porque através do teu próprio coração vem a única luz que pode iluminar a vida e torná-la clara a teus olhos".[9] Quando o buscador consegue ouvir a voz do silêncio em seu coração, as leituras e instruções exteriores tornam-se secundárias, porque, a partir de então, ele contará com a orientação do Mestre em seu interior.[10]
O devoto no limiar da experiência de comunhão precisará se valer da intuição, procurando identificar em suas meditações o que precisa ser feito para vencer as barreiras que ainda impedem sua união com o supremo bem.
Nessa última etapa, a prática da lembrança de Deus assume uma nova conotação. Em vez de pensarmos em Cristo como o mestre que procuramos ter sempre ao nosso lado, devemos agora orientar nossa consciência para a realidade de que Cristo habita em nós. Algumas pessoas sentem-se inibidas em pensar sobre sua natureza última como sendo a de Cristo, pois estão condicionadas a acreditar que o poder divino do Cristo cósmico só se manifestou através do Cristo histórico. Porém, o próprio Jesus reiterou um antigo ensinamento contido nos Salmos (Sl 82:6) dizendo que somos todos deuses (Jo 10:34). Paulo foi bem explícito ao declarar: "Não sabeis que sois um templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós"" (1 Co 3:16). Nosso Eu Superior é o Cristo interior, e a meta nessa etapa deve ser tornar essa realidade cada vez mais presente em nossa consciência.
Devemos ter em conta que quando ativamos um pensamento, especialmente um pensamento bem definido e concentrado, os resultados inevitavelmente se farão sentir. No entanto, o fator tempo na equação divina nem sempre corresponde às nossas expectativas humanas. Devemos ter fé que o processo de criação foi ativado e que os resultados estão a caminho, porém não podemos criar expectativas rígidas a respeito de como e quando esta manifestação vai ocorrer. Assim, devemos continuar a viver em total engajamento no serviço do Senhor e com profunda alegria na certeza de que já somos um canal da beneficência divina e que vamos nos tornar cada vez mais conscientes de nossa verdadeira natureza, até que, em profunda bem-aventurança, possamos dizer como o apóstolo Paulo: "Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gl 2:20).
Chega um determinado momento, porém, em que o devoto sente em seu coração que já chegou ao limite de sua capacidade. Isso é indicativo de que a fase do ciclo de atividade já cumpriu o seu papel e que agora ele deve aprender o segredo da entrega passiva e paciente a Deus. A partir de então, o progresso dependerá da ajuda do Cristo, de nosso mestre interior. Mas, de acordo com a lei divina, a ajuda do alto só pode ser concedida quando solicitada. Na Bíblia esse conceito é apresentado de forma poética e delicada numa tocante passagem do Apocalipse:
Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo (Ap 3:20).
Essa é uma das mais reveladoras passagens da Bíblia. Jesus, como símbolo do divino em nós, demonstra, com uma humildade que deve servir de modelo para todos os que aspiram seguir seus passos, que ele está sempre à porta de nosso coração, batendo suavemente na esperança de que estejamos atentos ao chamado sutil do alto e venhamos abrir a porta de nosso recinto interior para que Deus possa entrar. Cristo está sempre pronto para cear conosco. Se tomarmos as medidas necessárias para convidá-lo a entrar em nossa casa, ele comungará conosco. Seremos envolvidos e impregnados, primeiramente de forma inconsciente e, no seu devido tempo, conscientemente, pela substância divina, tornando-nos unos com ele. Mas, para que isso possa ocorrer, devemos querer ativamente essa comunhão, o que significa uma aspiração ardente, que deve ser demonstrada pelo nosso empenho em fazer todo o possível para que a graça divina possa ocorrer A coisa mais importante para isso é a disposição de tirarmos de nosso coração tudo aquilo que nos prende ao mundo (kenosis).
A Graça é, portanto, imprescindível na última etapa do processo que leva à união com Deus. Existe, no entanto, uma certa confusão com relação à natureza da Graça. A maior parte dos cristãos acredita que a Graça é independente da lei divina, sendo concedida por Deus a seus devotos de uma forma que lembra o favoritismo e paternalismo comuns aos nossos governantes. Essa idéia é inteiramente errônea e precisa ser corrigida. A lei e a ordem fazem parte integrante da natureza de Deus. Todos os aspectos e níveis da manifestação são regidos por leis inexoráveis estabelecidas pelo governante supremo de todo o universo. Deus, portanto, não poderia ir contra suas próprias leis.
A Graça parece uma expressão de favoritismo porque somos espiritualmente cegos e não conseguimos perceber aquele ponto em que, com o ato de entrega da alma a Deus, é superada a última barreira que restava para a comunhão com o Supremo Bem. Esse momento crítico ocorre com a convergência de dois processos: o amadurecimento ou esgotamento dos débitos cármicos do indivíduo e o acumulo de méritos até ser atingida a massa crítica, ou melhor, a velocidade de cruzeiro necessária para que a alma possa decolar vôo. Um carma maduro significa que não existem mais impedimentos para o próximo passo na Senda, e o acumulo de méritos indica que o combustível para o vôo da alma foi gerado pelo discípulo. A entrega irrestrita a Deus, nesse caso, funciona como o catalisador necessário para promover a combinação dos ingredientes espirituais existentes no interior da alma até que, decorrido o tempo necessário, ocorra a iluminação. Deus é absolutamente justo, portanto, o que chamamos de Graça é também uma expressão da grande lei. Por isso podemos dizer que a Graça não vem de graça; o místico deve trabalhar arduamente para merecê-la no seu devido tempo.
A importância da "entrega a Deus," característica dos últimos estágios da vida espiritual, sempre foi enfatizada pelos místicos. Catarina de Gênova, escreve sobre o trabalho de purificação realizado pelo amor de Deus em operação no devoto que a Ele se entrega:
"O último estágio do amor é aquele que ocorre e opera sem a participação do homem. Se o ser humano se tornasse consciente das muitas deficiências ocultas em si mesmo ele se desesperaria. Essas fraquezas são incineradas no último estágio do amor. Deus mostra então aquelas deficiências ao homem, para que a alma possa ver o trabalho de Deus, daquele amor em chamas. Se devemos nos tornar perfeitos, a mudança deve ser efetuada em nós, dentro de nós e ao nosso redor; isto é, a mudança deve ser o trabalho não do homem, mas de Deus. Isso, o último estágio do amor, ocorre exclusivamente pelo puro e intenso amor de Deus".[11]
A necessidade da entrega paciente e humilde a Deus na última etapa do caminho é descrita numa passagem da Bíblia pouco compreendida. É dito que em sua pregação Jesus deparou-se na região de Tiro e Sidônia com uma mulher cananéia que gritava pedindo ajuda do Salvador:
"Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente endemoninhada. Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: Despede-a, porque vem gritando atrás de nós. Jesus respondeu: Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel! Mas ela, aproximando-se, prostrou-se diante dele e pôs-se a rogar: Senhor, socorre-me! Ele tornou a responder: Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos. Ela insistiu: Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos! Diante disso, Jesus lhe disse: Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres! E a partir daquele momento sua filha ficou curada" (Mt 15:22-28).
O entendimento dessa passagem merece ser aprofundado, pois seus detalhes chocantes, são indícios de que um importante ensinamento está sendo velado. Os personagens e os fatos relatados são símbolos de verdades eternas. A mulher cananéia, não sendo judia, simboliza uma alma que não pertence ao grupo de discípulos do Mestre. Sua filha é a personalidade, que é descrita como estando horrivelmente endemoninhada, ou subjugada pelas paixões materiais, os demônios de nosso lado sombra. Jesus, representando o Cristo interior, ao receber o apelo da alma, inicialmente responde com silêncio. Notamos que ele não se nega a ajudá-la nem tece considerações sobre a questão, mas simplesmente responde com silêncio, como responde às preces dos devotos de pouca fé. Mas a alma é perseverante e continua a insistir em seus apelos à divina Presença, demonstrando profunda humildade, mesmo em face ao silêncio de Deus. Prostrar-se no chão significa submeter-se inteiramente à vontade do Senhor, reconhecendo que seu destino está nas mãos do Salvador. Esse ato de total humildade indica que a alma já procurou por todos os meios purificar sua natureza inferior e reconhece que só o Supremo Bem pode ajudá-la.
A alma determinada a superar suas deficiências insiste em obter a ajuda do Cristo, que diz algo aparentemente cruel, comparando a mulher a um cachorrinho. Podemos estar certos de que o doce e compassivo Mestre jamais diria algo assim a uma pessoa que implorasse ajuda, prostrada a seus pés. Essa passagem é, portanto, inteiramente alegórica. O pão, como na eucaristia, representa o alimento espiritual. Esse alimento é dado prioritariamente aos "filhos", ou seja, aos iniciados que estão inteiramente comprometidos com a vida de serviço ao mundo e, portanto, devem ser devidamente preparados para esse ministério. Os cães, como os porcos, simbolizam as pessoas que ainda estão vivendo para o mundo.
A mulher cananéia, no entanto, mostrando que sua compreensão espiritual já era bastante desenvolvida, responde de forma surpreendente, dizendo que os cachorrinhos (os buscadores) comem as sobras (absorvem os ensinamentos) que caem da mesa de seus donos (os Mestres). Todos os aspirantes estão exatamente nesse estágio alimentando-se das instruções dadas aos discípulos aceitos, que são "as migalhas que caem da mesa" do banquete divino. Essa demonstração de fé, tornada possível por uma profunda humildade e determinação, fará com que a alma receba do Cristo, no seu devido tempo, algumas migalhas da Graça, que possam satisfazer suas aspirações naquele momento de sua vida (curou a sua filha).
Todos os grandes místicos, nas etapas finais da vida unitiva, foram conhecidos pela imensa energia com que se dedicavam a seus afazeres, totalmente esquecidos de si mesmos, inteiramente voltados para o bem da humanidade. Significa dizer que entrar no Reino dos Céus é continuar trabalhando no cumprimento da vontade de Deus aqui na Terra, que é o crescimento evolutivo de todos os seres.
O místico sabe que sua missão é descrever a natureza do tesouro espiritual que agora é seu e compartilhar suas experiências sobre o modo de alcançá-lo. Esse tesouro, no entanto, tem que ser buscado por cada um. A visão espiritual tem que ser desenvolvida com o tempo, com a maturidade da alma, que não pode ser forçada como não pode ser forçada a maturidade do corpo. O místico, como todo discípulo avançado, prega mais pelo exemplo e pela prática do amor do que pelas palavras, ainda que suas palavras geralmente sejam reconhecidas como de extrema sabedoria.[12]
Faz parte da grande Lei que a humanidade seja salva por seus próprios membros que despertaram o Cristo interior . É por isso que os grande Instrutores encarnam-se periodicamente para, no corpo físico, ajudarem seus irmãos sofredores. E é por isso que o Mestre procura com tanto afinco promover o despertar espiritual daqueles que estão suficientemente maduros e, em particular, facilitar o crescimento espiritual de seus discípulos. Esses discípulos, movidos pela compaixão, tornam-se obreiros na seara do Senhor, dedicando suas vidas, encarnação após encarnação, ao progresso espiritual da humanidade, trabalhando de forma altruísta para minorar o sofrimento e promover a harmonia, cooperação e crescimento de todos os seres.
[1] Na tradição oriental é dito que: "Na sua nova existência, o homem recupera novamente toda a organização espiritual que tinha adquirido na vida passada e, assim, fica preparado para continuar os estudos e as tarefas que conduzem à Perfeição. Com a morte, não se perde nada daquilo que a alma adquiriu. As experiências que o homem fez nas vidas passadas tornam-se instintos e incitam-no ao progresso, até inconscientemente."Bhagavad Gita, op.cit., pg. 82.
[2] "Num certo sentido, temos dois cérebros, duas mentes -- e dois tipos diferentes de inteligência: racional e emocional. Nosso desempenho na vida é determinado pelas duas -- não apenas o QI, mas é a inteligência emocional que conta. Na verdade, o intelecto não pode dar o melhor de si sem a inteligência emocional. O velho paradigma defendia um ideal de razão livre do peso da emoção. O novo nos exorta a harmonizar cabeça e coração." Daniel Golman, Inteligência Emocional (R.J.: Editora Objetiva), pg. 42. Vide, também, Elaine de Beauport e Auro Sofia Diaz, Inteligência Emocional " As Três Faces da Mente (Brasília, DF: Editora Teosófica, 1998).
[3] Evangelho de Tomé, op.cit., pg. 126.
[4] Evangelho de Tomé, op.cit., pg. 129.
[5] Evangelho de Felipe, op.cit., pg. 156.
[6] Essa idéia é apresentada em Luz no Caminho, onde se usa o desabrochar da flor como símbolo do despertar da percepção direta da verdade: "Enquanto a personalidade toda do homem não tiver sido dissolvida e fundida; enquanto o divino fragmento que a criou não a manejar como mero instrumento de experimentação e experiências, enquanto a natureza toda não tiver sido vencida e se tornado submissa ao Eu Superior, a flor não poderá abrir-se." Op.cit., pg. 24.
[7] Gospel of Thomas # 70, em The Nag Hammadi Library, op.cit., pg. 134.
[8] The Mystical Christ, op.cit., pg. 97.
[9] Luz no Caminho, op.cit., pg. 34.
[10] Luz no Caminho sugere que quando o discípulo consegue ouvir a voz do Mestre interior a vitória está em suas mãos: "Mas, se o ouvires (o Mestre interior), imprime-o finalmente em tua memória, de modo que nada se perca do que tenha chegado a ti, e dele procura aprender o significado do mistério que te rodeia. Com o tempo não terás necessidade de instrutor algum." Op.cit., pg. 32-33.
[11] Catarina de Gênova, citada em Divine Light and Fire, op.cit., pg. 42
[12] Vide, The Mystical Christ, op.cit., pg. 179.