A CRISE DE EMERGÊNCIA ESPIRITUAL
Existem diferenças entre um surto psicótico e uma profunda experiência de abertura espiritual? Para psiquiatria tradicional, não. Incapaz de reconhecer e valorizar os sintomas que cercam as crises de transformação/renascimento vividas por certas pessoas, a ciência as trata com altas doses de medicações e internações. Com isso, é abortado o processo interior. E o pior: a partir daí pode instalar-se realmente um surto destrutivo, muitas vezes sem retorno.
O psiquiatra tcheco Stanislav Grof é conhecido internacionalmente pelos trabalhos pioneiros, desenvolvidos ao lado da esposa Christina, na área do que vem chamando “emergência espiritual”. Um exemplo típico de emergência – e de correta assistência à ela – está em seu livro Psicologia Futuro (Ed. Heresis)
Karen era uma mulher jovem e graciosa com quase trinta anos de idade, loira e leve, que porejava uma beleza suave e sonhadora. Externamente, parecia meio tímida e quieta, mas era muito astuta e ativa fisicamente. Teve uma infância difícil: sua mãe havia cometido suicídio quando ela tinha três anos e cresceu com um pai alcoólatra e sua segunda esposa. Deixou sua casa no final da adolescência, viveu períodos de depressão e periodicamente lutava contra a compulsão de comer.
Ela viajou, estudou e se apaixonou por dançar jazz, tornando-se dançarina consumada e professora ocasional. Ela gostava de cantar e desenvolveu habilidade profissional como perita em massagem.Karen se estabeleceu no campo, onde conheceu e passou a viver com Peter, um homem sensível e carinhoso – embora não tenham se casado, tiveram uma filha, Erin, por quem ambos têm muita devoção.
A história de Karen representa o mais dramático fim de um continuum entre uma emergência espiritual gradual e suave e a extrema crise emergência espiritual. Mesmo assim, muitas das questões ligadas à sua experiência se aplicam a qualquer um que esteja passando por um processo de transformação. Pudemos observar em primeira mão grande parte do que vamos descrever.
INÍCIO INESPERADO
A crise de Karen continha todos os elementos de uma verdadeira emergência espiritual: teve a duração de três semanas e meia, interrompeu totalmente seu funcionamento usual e foram necessárias vinte e quatro horas de atenção por dia. Após alguns dias desse estado de emergência espiritual, alguns de seus amigos, que sabiam do nosso interesse nessa área, pediram que nos envolvêssemos nos cuidados com ela. Nós a vimos quase diariamente durante as últimas duas semanas e meia do seu episódio.
Como costuma ser o caso da maior parte das emergências espirituais, o início da crise de Karen foi rápido e inesperado e ela ficou tão absorvida e dominada por suas experiências que era incapaz de cuidar de si ou de sua filha de três anos, que ficou com o pai. Seus amigos e a comunidade onde vivia decidiram que, ao invés de hospitalizá-la, iriam se revezar para cuidar dela vinte e quatro horas por dia.
Karen foi levada de sua casa para um quarto na casa de vários de seus amigos. Eles então organizaram um “serviço de acompanhamentos”: duas pessoas por vez se alistaram para turnos de duas ou três horas durante cada período de vinte e quatro horas. Puseram um caderno do lado de fora da porta para que os acompanhantes pudessem assinar sua entrada e saída e anotar sua impressões sobre as condição de Karen, o que ela havia dito ou feito, que líquidos ou comidas havia consumido e que tipo de comportamento a próxima dupla deveria esperar.
SENTIMENTOS ABRASADORES
No primeiro dia de seu episódio, Karen anotou que sua visão ficou mais clara repentinamente, não tão “suave e indistinta” quanto costumava ser. Ela ouviu vozes femininas dizendo que ela estava adentrando uma experiência importante e benigna. Durante vários dias, um tremendo calor irradiou por seu corpo e ela teve visões de fogo e campos vermelhos, às vezes sentindo-se consumida por chamas. Para saciar a extrema sede que sentia, ocasionada pelos sentimentos abrasadores, ela tomou grandes quantidades d’água.
Parecia que Karen era propulsionada através do episódio por uma enorme energia que extravasava de si, levando-a a vários níveis do seu inconsciente e às memórias, emoções e outros sentimentos e sensações lá contidos. Ficando muito parecida com uma criança, ela reviveu eventos biográficos tais como o suicídio da mãe e o subsequente abuso físico infligindo por sua madrasta. Em uma ocasião, a memória infantil de estar levando uma surra de cinto mudou repentinamente e ela se sentiu como um negro africano sofrendo ao ser chicoteado a bordo de um navio negreiro apinhado.
CONTATO COM A MORTE
Ela lutou durante a dor física e emocional de seu próprio nascimento biológico e reviveu repetidas vezes o parto de sua filha. Experienciou a morte várias vezes e de várias formas e sua preocupação com a morte fez com que seus acompanhantes temessem a possibilidade de uma tentativa de suicídio. Porém, tal ocorrência era improvável devido à segurança do ambiente onde estava e ao zelo minucioso de seus ajudantes. Todos os envolvidos mantinham uma vigília constante, acompanhando-a constantemente e encorajando-a a manter suas experiências internalizadas ao invés de exteriorizá-las ativamente.
Periodicamente, Karen se sentiu conectada com sua mãe morta, assim como com uma amiga que morrera em um acidente há apenas um ano. Ela disse que sentia falta das duas e desejava muito unir-se a elas. Em outros momentos, sentia estar observando outras pessoas morrerem ou que ela mesma estava morrendo.
Dizendo-lhe que era possível experienciar a morte simbolicamente sem de fato morrer fisicamente, seus acompanhantes lhe pediam para manter os olhos fechados e a encorajaram a experienciar totalmente estas sequências de morrer internamente e a expressar as difíceis emoções nelas envolvidas. Ela aquiesceu e em pouco tempo passou pelo intenso confronto com a morte e com outras experiências.
SEXO E ESPIRITUALIDADE
Durante alguns dias, Karen foi assolada por sequências envolvendo elementos do mal. às vezes, ela se sentia como se fosse uma bruxa da antiguidade, participando de rituais mágicos de sacrifício, e em outros momentos sentia um monstro hediondo dentro de si. Conforme a besta diabólica expressava suas energias demoníacas, ela inundava o quarto com explicativas raivosas e rolava no chão fazendo expressões ferozes. Seus acompanhantes, percebendo que a extravasão não era direcionada a eles, a protegiam contra possível autodestrutividade e encorajavam a expressão total e segura dos impulsos.
Às vezes sua experiência se centrava sobre a sexualidade. Após reviver algumas memórias traumáticas de sua própria história sexual, ela sentiu uma forte fonte de energia na pélvis. Após ter encarado a sexualidade como um impulso instintivo baixo, teve uma profunda experiência espiritual na qual descobriu o mesmo insight oferecido por determinadas tradições esotéricas, particularmente o tantra: o impulso sexual não é simplesmente um ímpeto biológico, mas também uma divina força espiritual. Ela sentiu ter sido a primeira mulher a quem tal percepção fora concedida e passou a expressar uma nova reverência por seu papel místico como mãe que dá a vida.
CRIATIVIDADE E SENSIBIIDADE
Durante um outro período, Karen sentiu-se em união com a Terra e seus povos, sentindo a ameaça da destruição iminente. Ela teve uma visão de que o planeta e sua população estavam se dirigindo ao aniquilamento, expunha insigths bem delineados e sofisticados sobre a situação mundial. Ela viu imagens de líderes soviéticos e americanos com seus dedos “no botão” e fez comentários apurados e muitas vezes espirituosos sobre a política internacional.
Por vários dias, Karen ficou diretamente conectada com uma poderosa fonte de criatividade, expressando várias de suas experiências em forma de canções. Era impressionante testemunhar: após um tema interno emergir à consciência, ela criava uma canção sobre ele ou se lembrava de alguma que já conhecia e cantava prazerosamente ao atravessar aquela fase do seu processo.
Karen estava extremamente sensitiva, altamente sensível e aguçadamente sintonizada com o mundo à sua volta. Ela conseguia enxergar “através” de todos à sua volta, muitas vezes antecipando seus comentários e ações. Um dos acompanhantes estivera comentando sobre ela antes de entrar para vê-la. Quando ele entrou no quarto, ficou impressionado com a reprodução precisa que Karen fez da conversa que acabava de ter. Para o grande desconforto das pessoas ali envolvidas, ela comentava com muita franqueza sobre qualquer jogo interpessoal que ela percebia sendo efetuado e imediatamente confrontava qualquer um que estivesse com uma postura muito controladora ou rígida, recusando-se a cooperar com eles.
A JOIA SAGRADA
Após aproximadamente duas semanas, alguns dos estados difíceis e dolorosos começaram a amainar e Karen começou a ter experiência cada vez mais benévolas e iluminadas, sentindo-se cada vez mais conectada com uma fonte divina. Ela viu dentro de si mesma uma joia sagrada, uma pérola irradiante que sentia simbolizar seu verdadeiro centro e passou muito tempo falando com ela amorosamente e nutrindo-a. Karen recebeu instruções de uma fonte interna sobre como se amar e se cuidar, e sentiu sendo curadas as feridas emocionais que vinha carregando em seu coração e seu corpo. Ela disse estar se sentindo especial, “renascida”, como se tivesse passado por um “segundo nascimento”, comentando: “Estou me abrindo para a vida, para o amor, a luz e o Self”.
Conforme a experiência de Karen ia terminando, ela ficava cada vez menos absorvida pelo seu mundo interno e mais interessada por sua filha e pelas pessoas à sua volta. Começou a comer e a dormir com maior regularidade e aos poucos foi retomando alguns dos indispensáveis cuidados diários consigo mesma. Ela queria terminar sua experiência e voltar para sua casa e ficou claro para ela que as pessoas à sua volta também estavam prontas para o término do episódio. Karen e seus ajudantes chegaram ao acordo de que ela tentaria reassumir as responsabilidades dos cuidados diários por si mesma e por sua filha.
Tivemos oportunidade de falar com Karen em várias ocasiões desde o seu episódio e ficamos muito satisfeitos em ver que as mudanças positivas têm um caráter duradouro. Sua disposição melhorou e ela continua a ser segura de si e descontraída. Sua autoconfiança ampliada possibilitou sua apresentação como cantora em eventos públicos.
Stanislav Grof (n. 1 de julio de 1931, en Praga, República Checa (antiguamente Checoslovaquia)) es uno de los fundadores de la psicología transpersonal y un investigador pionero en el uso de los estados alterados de conciencia con el propósito de sanación, crecimiento e introspección